O sujeito contemporâneo e o sofrimento psíquico: Possíveis diálogos com a Psicanálise
As sociedades ocidentais fundamentaram-se em diversas correntes oriundas dos ideais iluministas que exerceram grande influência na forma de pensar dos sujeitos na contemporaneidade. Tais ideias, forneceram subsídios conceituais, teóricos, empíricos e epidemiológicos que colaboraram significativamente para a estruturação e desenvolvimento dessas sociedades nos campos culturais, sociais, políticos, econômicos e que, como via de regra, impactaram na vida pública e privada.
Sendo assim, se faz necessário articular dentre as novas concepções de homem e o seu modo de funcionar mundo contrasta com a questão do individualismo contemporâneo, e como esta se relaciona diretamente com a esfera da vida psíquica das pessoas produzindo contingências que favorecem ao adoecimento e seus vários outros desdobramentos.
Por se tratar de um ensaio, o texto dispõe de uma liberdade argumentativa maior e arrisca interpretações sobre a temática proposta. Segundo o filósofo José Ortega y Gasset (1883-1995), o ensaio é “a ciência sem prova explícita”, e por se tratar de ciência os pressupostos rigorosos permanecem como forma norteadora para discussão do problema, mas com uma economia na argumentação.
Há um século atrás, Freud desvelou o que chamou de as três “doenças narcísicas”, uma ideia, que segundo ele, representava as três maiores humilhações sofridas pelo homem: o heliocentrismo de Copérnico, na qual priva a terra de ser o centro do universo e assim os seres humanos, o evolucionismo de Darwin, que retira da humanidade de lugar de honra entre os seres vivos, pois simplesmente emergimos como qualquer outra espécie e o inconsciente, que sugere um homem que não é dono do próprio destino, mas predomina-se o papel dos processos psíquicos. Posteriormente, a ciência continuou a demonstrar ou "humilhar" evidenciando a ilusão da mente, do senso de liberdade e da autonomia (ŽIŽEK,2010).
Freud não foi apenas o pai da psicanálise como muitos já o intitularam, mas ele propôs uma nova forma de saber sobre a psique. A vida inconsciente descrita em seus trabalhos influenciou no pensamento ocidental incontestável presentes na filosofia, nas artes, literatura etc. Assim, a psicanálise emergiu afirmando que o inconsciente, bem como a sexualidade eram campos nunca antes explorados e que era ali que repousava todo um potencial adormecido.
O inconsciente para Freud se manifesta nos sonhos, nos sintomas e nas transferências nos atos falhos e nos chistes. A partir da premissa de “tornar consciente o inconsciente” é possível compreender os percursos teóricos deste autor. Os principais conceitos que inauguram a Psicanálise de Freud são: a noção de inconsciente; a teoria sexual e o princípio do prazer e de desprazer; a teoria das pulsões e a noção de aparelho psíquico.
Quando Lacan perpassa pelos insights do pensamento fundamental de Freud sobre o “inconsciente", pontua-se diferenças significativas desse conceito. O inconsciente Freudiano gerou muita polêmica por retirar o “eu” racional e o colocar à mercê de um domínio cego que possui suas próprias regras, enquanto o Lacaniano, ganhou uma nova interpretação na qual diz que o inconsciente está estruturada pela linguagem e, é nesse ponto que ele se afasta de Freud (ŽIŽEK,2010).
A Psicanálise dissolve então a ilusão do domínio do eu e da consciência como fatores determinantes do que move os indivíduos para a ação, bem como Rosário (2019) sintetiza:
A subversão da Psicanálise apoia-se na ideia do descentramento do eu em relação ao inconsciente que a ele se opõe, desfazendo a ilusão da soberania do eu e da consciência, marcas da Modernidade. Com a descoberta do inconsciente, é possível questionar as pretensões da modernidade, entendidas, a partir da ideia de autonomia, como domínio e controle de si mesmo e do mundo. Autonomia, nesse sentido, passa a ser apreendida não mais como atributo humano vinculado ao exercício da razão, mas relacionada à noção de responsabilidade. Com efeito, o sujeito, embora não domine suas pulsões e desejo inconscientes, ainda assim deverá responder pelos destinos de sua satisfação pulsional (ROSÁRIO, p. 2019).
A evidência das noções de liberdade e autonomia são valores que fundamentam a modernidade embasadas nos ideais iluministas. Em "Dialética do esclarecimento” (1947) Adorno e Horkheimer, descreveram bem esses fenômenos constituintes dos novos hábitos de vida dos sujeitos modernos baseada na valorização da racionalização; a desmitologização do mundo; o saber enquanto um aparato de dominação; a alienação do indivíduo, levando o sujeito moderno à condição de refém do racional como verdade e a universalização do fetiche:
O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los. O homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las. É assim que seu em-si torna para-ele (...) (ADORNO; HORKHEIMER, p.20, 1947).
Ao romper com essas antigas certezas sobre o mundo e descentralizar as concepções antropológicas, epistemológicas e religiosas, o homem voltou-se para si, passou a questionar tudo que era exterior e, nesse ponto, percebe-se a emergência da subjetividade como um referencial de conhecimento e verdade. Roudinesco (2000), enfatiza que quanto mais a sociedade acentua as diferenças e promove a ideia de iguais perante a lei, reivindica sua singularidade e anula-se em identificar as universidades, assim a era da subjetividade dá lugar para a individualidade com a ilusão de liberdade e desvinculados de suas raízes (ROSÁRIO, 2019; ROUDINESCO; 2000).
Como visto, ainda que de modo sucinto, com o incremento do individualismo valores como os de liberdade e de autonomia ganham novas roupagens. Busca-se, com esse percurso, figurar as transformações da cultura e seus efeitos na subjetividade, amparadas em solo individualista, o qual viabiliza a manifestação de diversas formas de desrespeito entre homens. Nesse ponto cabe, ainda que de modo incipiente, uma apreensão da ideia de desrespeito (ROSÁRIO, p.4, 2019).
Do ponto de vista psicanalítico, esse individualismo que se constitui na modernidade, trata-se da necessidade do indivíduo de pressupor algum princípio e valor a sua existência, englobando conceitos de liberdade e autonomia que perpassam essa noção de autossuficiência indicando traços explicitamente narcísicos, ou seja, são características de valorização do eu ideal sem compromisso com a alteridade do outro, produzidos na empiria no estabelecimento dos laços sociais.
O individualismo contemporâneo teria correspondência com a assimetria entre o processo de constituição do ego e o processo de socialização - haveria aí uma inversão histórico-antropológica, pois a socialização seria então comandada pelas delimitações identitárias. Existiria uma relativa autonomia das "estruturas afetivo-cognitivas" em relação à socialização e aos papéis sociais. As conexões do mundo da vida (sentido e função, íntimo e manifesto, público e privado, identidade e papel social) tornar-se-iam menos um atributo dado pela socialização que uma "construção" socialmente assumida pelo indivíduo. (PERRUSI, p.143, 2015).
Embora o sofrimento psíquico seja uma construção social, é expressado de maneira individual, essa característica acentua-se nos processos de psicologização ao vincular o funcionamento psíquica com o social, como destaca Perrusi, p.146, 2015):
O individualismo contemporâneo seria fonte de autonomia, mas também de adoecimento. Por meio do sofrimento psíquico, pode-se vincular o psíquico e o social, pois a socialização moderna induz a uma apreensão subjetiva e individualizada do mundo. Não causa surpresa, com efeito, que ocorra uma “psicologização” do sofrimento psíquico, mesmo que sua sociogênese seja igualmente fundamental – ao psicologizá-lo e ao “biologizá-lo”, neutraliza-se seu aporte simbólico.
Žižek (2010) e Roudinesco (2000) dialogam entre si, quando trazem à tona reflexões acerca do lugar da psicanálise na atualidade e estabelecem uma relação entre os tantos avanços científicos sobre o funcionamento cerebral neurobiológico e os tratamentos químicos, os modelos cognitivos, terapias comportamentais e os contextos sociais, que colocam em questão a ideia da repressão e da evidência pulsional do indivíduo não soarem mais como uma explicação válida.
Ao descrever o sofrimento psíquico na sociedade, Roudinesco (2000) infere que esse sofrimento manifesta-se em forma da depressão atingindo corpo e alma, que seria o responsável também por gerar apatia, tristeza, culto e busca da identidade de si. A autora ainda completa que o sujeito deprimido não acredita em nenhuma terapia por buscar freneticamente preencher esse vazio do seu desejo, assim, o sujeito depressivo não reflete sobre sua origem da sua infelicidade, não tem tempo para nada e ainda sofre com as liberdades adquiridas .
Nesse contexto, o indivíduo não passa pela psicanálise, mas para a psicofarmacologia e deixa a psicoterapia para buscar a homeopatia, e assim é possível visualizar nas sociedades ocidentais um crescimento de práticas baseadas em um sistema de crenças que se fundamentam na ilusão de cura. O problema destacado aqui, é portanto não é na dimensão humana de se orientar por outras formas de conhecimento, mas o de depositar sobre elas a capacidade de produzir cura sobre o adoecimento.
Mediante essa necessidade de cura, guiado por um senso de imediatismo, os psicotrópicos são tidos então como as soluções para os problemas dessa vida moderna, permeada promessa de “trazer a felicidade” ao sujeito, facilitar sua concentração, ajudar nas atividades que envolvam os relacionamento interpessoais. O sujeito é levado a acreditar que há um estilo de vida com comportamentos disfuncionais que não condizem com o que se é esperado, não tendo tempo, nem vontade para buscar o entendimento para as variáveis que asseguram a manutenção dos comportamentos que lhe causam prejuízo.
Roudinesco (2000) apresenta uma resposta psicanalítica a um debate central acerca da mercantilização dos psicofármacos e a medicalização dos corpos, por exemplo, principalmente a partir da elaboração dos manuais diagnósticos que visam a “cura” do sofrimento psíquico, assim, questões relacionadas a um senso de individualismo exacerbado, fragilidade dos laços sociais estabelecido e o esvaziamento da alteridade em uma sociedade tão diversa, são elementos complexos que corroboram para produzir equívocos na relação do adoecimento mental.
De acordo com Perussi (2015), o processo de reconfiguração da individualidade seria o ponto de partida para os novos processos de subjetivação. Todo esse movimento tende a produzir consequências psicológicas por não se reduzir as implicações do campo social neste quesito, logo, formando assim uma base siociogênica do psiquismo. Novos sofrimentos implementam a produção de novas topografias de psicopatologias oriundos de variações históricas entre o que seja considerado normal e patológico. E, se nota-se novas psicopatologias, infere-se que novas estruturações psíquicas, as mais sensíveis a processos sociogênicos.
Propor um novo status social do sofrimento psíquico implica dizer que há novas maneiras de sofrer, logo, assim que capturadas pela “saúde mental”, novas expressões psicopatológicas – na nossa sociedade, o sofrimento tende a ser enquadrado rapidamente em alguma nosologia (PERUSSI, p.141, 2015).
Há também um reducionismo seletivo nas causas e origens do sofrimento psíquico, o que abre um terreno fértil para a manifestação de outros saberes se apropriarem e fornecerem elementos convincentes e sem compromisso com a ontogênese e demais aspectos constitutivos do ser, sobre essa questão, Roudinesco (p. 4, 2000) promove uma crítica a redução neurobiologista do sofrimento, bem como observa-se a seguir:
Posto que a neurobiologia parece afirmar que todos os distúrbios psíquicos estão ligados a uma anomalia do funcionamento das células nervosas, e já que existe o medicamento adequado, por que haveríamos de nos preocupar? Agora já não se trata de entrar em luta com o mundo, mas de evitar o litígio, aplicando uma estratégia de normalização. Não surpreende, portanto, que a infelicidade que fingimos exorcizar retorne de maneira fulminante no campo das relações sociais e afetivas: recurso ao irracional, culto das pequenas diferenças, valorização do vazio e da estupidez etc. A violência da calmaria, às vezes, é mais terrível do que a travessia das tempestades.
Diante desses argumentos e elementos teóricos norteadores, pode-se elencar as seguintes observações: 1) As mudanças provenientes do desenvolvimento das sociedades contemporâneas exerceram influências na vida cotidiana dos indivíduos; 2) Esses impactos afetam diretamente na forma como as pessoas se relacionem entre elas e com o mundo, assumindo um forte caráter de impessoalidade em detrimento as considerações de alteridade em relação ao outros; 3) A fragilidades dos laços sociais, a vida agitada dos grandes centros urbanos em contraste com uma noção de liberdade e autonomia ilusória, produz indivíduos mais individualistas e deprimidos.
Observa-se, portanto, uma sociedade nas quais os indivíduos necessitam mais de preencher seus vazios existenciais, sua falta de tempo para si e perante a falta constante e acabam apresentando um mal-estar que vem em forma de sintoma e urge a necessidade de uma “cura”.
REFERÊNCIAS
ADORNO, T. W; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1985.
PERRUSI, A. Sofrimento psíquico, individualismo e uso de psicotrópicos: saúde mental e individualidade contemporânea. Tempo social, v. 27, p. 139-159, 2015.
ROUDINESCO, E. Por que a psicanálise?. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2000.
ROSÁRIO, A. B. Individualismo contemporâneo e novos arranjos subjetivos na perspectiva da Psicanálise. Analytica: Revista de Psicanálise, v. 8, n. 14, p. 1-15, 2019.
ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2017.
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